23 de dezembro de 2010

Casualidade

Sentou-se para esperá-la. Meia hora atrás, havia entrado na loja, não deveria demorar a sair. Em outra época, tudo era mais fácil. Quando criança, quantas vezes não fez uma cartinha para expressar o que sentia. Mas agora era diferente, não pegava bem escrever essas coisas. E se era patético o que fazia, só ele sabia (no mundo adulto, isso não é problema).

Ela finalmente saiu e foi até a praça de alimentação. Ele a seguiu, fazendo o possível para não ser notado. Fingiu surpresa ao se esbarrarem.

— Você por aqui?

Falaram-se por algum tempo, mas ela lembrou-se que precisava ir. Estava com a agenda cheia! Ele compreendeu, deixou um beijo em seu rosto. Depois, antes de dormir, ficou torcendo para não tardar o dia em que a encontraria, de novo, casualmente.

21 de dezembro de 2010

Fila

Pouca coisa é tão simbólica no mundo adulto quanto uma fila indiana. É o ser humano visto pela nuca.

15 de dezembro de 2010

Conteúdo

A Coca-Cola toma o formato de uma garrafa, a não ser quando a despejamos num copo. Poderá ter a forma que quisermos, bastando para isso trocar o recipiente.

Com os relacionamentos, nas redes sociais, algo parecido acontece: mudam de formato a cada nova ferramenta.

24 de novembro de 2010

Entrega

Na mesa redonda, cartas de baralho e álcool. Além disso, só um cinzeiro. Pensamentos formulavam estratégias, enquanto ela se despia. Naquela noite, estendeu os braços e deixou os olhos se encherem de água. Com a voz trêmula, reviveu comovida, palavra por palavra, o que havia ficado para trás.

Tirava a roupa para alguém, quer prova maior?

20 de novembro de 2010

Dálias

No Café de ótima decoração, havia uma Dália Fada do Outono desenhada na parede. Sobre o balcão, uma dália real: a Moonfire. Perolada e alta, só não chamava mais atenção do que a tela pintada pela proprietária do local, Ruth. Na imagem, mãos de um corpo humano-animal seguravam o Livro da Vaca do Céu, mas sem tocá-lo.

Quando Mafalda entrou, viu a pintura. Parecia-lhe Salvador Dali. Pensou em comentar algo, mas limitou-se a fazer o pedido. Lembrou-se que estava ali pelo aroma que se espalhava pelo quarteirão.

Ruth sentou-se à sua frente. Diante do olhar admirado da cliente, fez um comentário: "O dono dessas mãos teria dismorfobia, não?". E ficaram à vontade, afinal, a comédia rende boas impressões. "Acho que sim!", respondeu Mafalda, abrindo um riso quântico.

16 de novembro de 2010

Ela, ele e Saint Exupéry

Não por acaso, lembrou-se de O Pequeno Príncipe. Estava diante de seu arco-íris imaginário e isso não era pouco. Para explicá-la o quanto era significativo, disse que a amava mais do que tudo. Para ela, foi tão emocionante quanto ganhar o primeiro beijo — ou como vê-lo novamente pela primeira vez. Tanto tempo! Dias, meses, anos, rugas.

Este planeta parece não ter sentido, a não ser quando se vê com o coração.

3 de novembro de 2010

Todos iguais

Somos todos iguais, embora cada um tenha sua particularidade: sonhadores, famintos, incrédulos. 

Debaixo da terra ou perto do céu: make each impression a little bit stronger and it will be easy to notice.

26 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte final)

Castor pede licença e entra. Atrás da mesa, uma senhora educada e ao lado a jovem que levou para a cama na noite anterior, em pensamento. As duas esboçam sorrisos mecânicos.

A primeira começa a falar enquanto a segunda lhe traz documentos. Elogiam sua disciplina e dizem que a empresa é grata por todo o serviço prestado. Comunicam, enfim, que é preciso remanejar o quadro de funcionários.

Castor entende o recado: está sendo demitido. Seus serviços já não são necessários, é preciso substituir o velho pelo novo.

Questiona o motivo, pede para conversar com o encarregado do setor, "aquele menino que entrou aqui há pouco". Não adianta, querem apenas que assine o papel e retorne para casa. Há trabalho para quem permanece.

Castor segura a caneta e escreve seu nome no lugar indicado. Suas mãos tremulam, mas as mulheres fingem não ver. Batem o carimbo, prometem lhe pagar tudo o mais rápido possível.

Ele volta para o portão e por uma primeira vez coloca os pés na rua antes da hora do almoço. Um pouco desorientado, retorna ao ponto de ônibus. Senta-se de cabeça baixa à espera do próximo circular. Apesar de magoado, se acalma.

Por fim, o velho Castor chega em casa, se joga no sofá e tira seu sapato apertado. Catarina está na cozinha e não o percebe. Ele não sabe o que dizer a ela quando se encontrarem. Ao menos, não passou no bar para beber.

O desânimo ameaça lhe abater, mas ele é forte o suficiente para não permitir que isso aconteça. Para ludibriar os pensamentos, diz a si que ao menos da próxima vez poderá acompanhá-la na feira e escolher, ele mesmo, seus espinafres.

25 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 8)

A segunda-feira chega e o mundo recomeça. Na mesa do café, Castor come pão com margarina e bebe leite com chocolate em pó. 

Catarina comenta qualquer coisa, mas ele não ouve. Está com o trabalho na cabeça e não tem ouvidos para outra coisa. Come rápido antes de enfrentar o ônibus lotado.

Quando sobe no veículo, cumprimenta velhos conhecidos. As valetas são horríveis, mas não reclama: faz o trajeto todo dia e antevê os pontos ruins. Percebe que o número de passageiros jovens tem aumentado e diz a si que é por causa das novas exigências do mercado. É preciso custear estudos e sonhos.

Termina por pensar que, anos mais tarde, serão todos velhos conhecidos. É ruim vender a vida inteira por poucos salários, mas nem todos têm a sorte de tornar as coisas diferentes. Acontece.

Quando enfim chega ao emprego, não lhe deixam bater o cartão. Castor acha isso estranho, afinal, há anos faz o gesto sem que ninguém o interrompa. 

— Dona Odete quer falar com o senhor.

Vai até Dona Odete, convencido de que deve ser o aviso sobre mais um desses treinamentos de hoje em dia. "Antes era diferente, todo mundo trabalhava mais", pensa. Quase de modo automático, rememora todo o tempo que está ali.

24 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 7)

Pouco antes de dormir, Castor faz uma reflexão sobre o dia. Toda noite é da mesma forma, traz à memória o emprego, a família, a saúde, e dorme em paz.

Mas dessa vez está com peso na consciência. Tem Catarina ao lado, mas não pensa nela. Pensa na nova menina da fábrica. Ela trabalha no escritório, mas vai à produção levar documentos. É uma jovem de 20 e poucos anos, tem os cabelos pretos e a pele clarinha.

Todos os homens da fábrica a admiram, mas Castor faz do gesto uma prova de sua sinceridade peculiar. Quando a vê, imagina sua nudez. No começo ficava envergonhado de si, mas depois passou a separar o fato de suas intenções. Porém, agora é diferente: nunca havia trazido a ideia para a cama. Que ideia atroz!

Sente-se infeliz por aquele momento e diz a si que tudo é culpa da rotina de tantos anos. Mas mantém-se firme. Amanhã tem muito trabalho e não é hora de pensar em bobagens, mas de descansar.

19 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 6)

Castor não é católico fervoroso, está longe de ser, mas acompanha a esposa às missas e cumpre os rituais da paróquia.

É verdade, sente alívio toda vez que o compromisso termina. Não gosta de como as pessoas o olham enquanto reza e chateia-se com isso.

Catarina diz que não é certo ter menos fé por esse motivo, mas ele não consegue ser diferente. Quando retorna, busca algum tira-gosto e liga a TV, como sempre. Tem a impressão de assistir a mesma atração da última semana. Mas é outra, embora a fórmula seja a mesma.

17 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 5)

Castor acorda e caminha para o café. Catarina está lá fora conversando com os vizinhos. Ele come devagar. Pela janela, olha para ela e sente-se bem em tê-la ao lado.

Ela entra e comenta sobre o último caso do bairro. Castor não tem a menor vontade de saber da vida alheia, pensa em dizer algo a respeito, mas se mantém calado.

Nota movimentos do lado de fora e percebe que o jornal chegou. Senta-se na sala entretido com a leitura. Um jornal e vários programas de TV depois, sente o cheiro vindo da cozinha. O almoço está pronto: macarrão, molho vermelho e Coca-Cola. Come em demasia, volta ao sofá e dorme até a hora do futebol.

O relógio o desperta. Programou-se para acordar no momento exato da partida. Pede para a esposa preparar pipoca, se levanta e busca cerveja.

Quando o jogo termina em 0 a 0, fica frustrado. Uma semana de espera para a partida terminar assim, empatada. Reclama sozinho e diz que aqueles jogadores não merecem o dinheiro que ganham. "Pernas de pau", resmunga e vai ao banho, enquanto Catarina lhe apressa, pois já estão atrasados para a igreja.

16 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 4)

É sábado e Castor acorda mais tranquilo. Há coisas a fazer: o ferro de passar precisa de reparos e a pia do banheiro de conserto. Gasta a manhã em afazeres domésticos e senta-se para o almoço. Percebe que Catarina ainda está na bronca e se resume a falar só o necessário. Ela, ao contrário, fala bastante. 

— As meninas chegaram pouco antes de o sol nascer.

Castor reflete que isso não está certo, mas nada diz. No fundo, sabe que Catarina se encarregará de mantê-las na linha. Vai fazer a barba e apara o velho bigode. 

A noite chega e ele se desmonta no sofá. As filhas conversam e a esposa dorme com o cachorro no colo. Faz de tudo para não acordá-la, pega o controle-remoto e troca o canal.

Mas Catarina acorda, muda, e vai para o banho. Castor rememora momentos em que isso não acontecia sem que estivessem juntos. Mas diz a si que o tempo passou e que já estão velhos demais para amar feito jovens. Abandona os pensamentos; começa seu noticiário predileto.

Já na cama, pensa em abraçá-la, mas se contém. Pergunta a si o motivo e não consegue responder.

11 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 3)

Ao voltar para casa, tropeça na porta ao entrar. Reclama do chão mais acentuado naquele local e promete dar um jeito naquilo. Está bêbado e Catarina lhe dá broncas e mais broncas por causa disso. Ele permanece calado o tempo todo, pois sabe que está errado e nada pode fazer.

Suas filhas se despendem, vão para a noite, pedindo para que ambos parem. Catarina diz a elas que não os amolem, afinal, ainda são crianças e aquilo é coisa de adulto. Mas já não são crianças, e ela sabe disso, só não quer admitir.

Castor vai ao quarto e despenca na cama, com a esposa lhe atormentando atrás. Ela diz que o ama por tudo o que há na casa, mas que sua tibieza esmorece o lar. Se o elogia no atacado, critica no varejo.

Mas ele nada ouve e devagar o sono começa a vir. Esse momento é maravilhoso, quase sublime, afinal, ao mesmo tempo, a voz nervosa de Catarina vai sumindo aos poucos.

8 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 2)

Quando acorda, sente uma alegria singular, afinal, é sexta-feira. Foi uma semana difícil, mas, como a vida inteira aprendeu que o trabalho dignifica o homem, não reclama. Para ele, é quase um pecado.

No café, come pão com margarina e bebe leite com chocolate em pó. Catarina comenta que é dia de supermercado; ele entende o recado e abre a carteira. Ainda é meio de mês, mas já é preciso refazer as contas. Ela pergunta o que quer da feira e ele pede espinafres.

Suas filhas acordam para a escola e pedem dinheiro para a noite. Havia separado alguns trocados para o bar, mas entrega a elas. 

O desânimo ameaça chegar, mas Castor termina por se lembrar que há "happy hour" com os amigos após o expediente. Além disso, o domingo está chegando, com o futebol na TV. Levanta-se revigorado, mesmo com a esposa cobrando para não beber em demasia ao voltar.

7 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor

O velho Castor se joga no sofá e tira o sapato. Reclama que está apertado e pede café. Na sala, as duas filhas conversam sobre a escola. Atrás de si, Catarina, sua esposa há 20 anos, mantém o rosto fechado.

Uma das meninas, Carina, vai buscar a bebida, enquanto Catarina lhe cobra que pare com o álcool. Diz que mesmo o café já não tira o cheiro ruim de sua boca e que pretende deixá-lo, caso as coisas continuem assim. Está blefando, e ambos sabem disso.

Patrícia, a caçula, mostra aos dois um toque novo que pôs no celular. É a música de uma nova boyband, e ele diz a si que as músicas de hoje já não são como as de antigamente. Quando o café chega, liga a TV e coloca em seu canal favorito. É um dos momentos mais aguardados do dia, e ele saboreia cada imagem como se fosse única, embora saiba que são todas iguais.

O cão de estimação late querendo entrar, Castor autoriza e sua esposa abre a porta. O bicho pula no sofá. Passa horas vendo TV, fazendo cafuné no felpudo. De tempos em tempos, grita para a esposa e ela, da cozinha, lhe traz tira-gostos.

Quando termina o programa, vai ao quarto deitar-se, pois é quinta-feira e no dia seguinte, já cedo, será preciso pegar dois ônibus para o trabalho.

30 de agosto de 2010

Berenice e o relógio

Quando o relógio da cozinha desperta, Berenice sabe que todos chegarão para o almoço: o marido do trabalho e as filhas do colégio. Então pede dinheiro para o mercado e comenta que há telefone para pagar, além de parcelas do veículo, IPTU, escola etc. 

Todos se levantam apressados, ela se chateia com o tempo, o acha ignóbil, e tudo se fecha. Não percebe o óbvio: reclama do que não há como impedir e aceita o que poderia ser evitado.

27 de agosto de 2010

Berenice e a janela

Pela janela, Berenice vê a rua. Dois namorados se abraçam no portão; e o mundo se resolve.

26 de agosto de 2010

Berenice e a caixa

Dentro da caixa, há mais cores do que nas prateleiras do mercado. Lá dentro, tudo é calculado e a verdade é entrecortada, afinal, a exatidão dos fatos precisa ser editada para ser convincente.

Berenice não distingue: aquilo é um retrato das coisas ou a vida é um retrato daquilo? Não percebe o óbvio: ali não se retrata as coisas como elas são. Nada é neutro: linhas editoriais sempre irão ferir alguém.

24 de agosto de 2010

Cânone

Um romântico olha nos olhos de outra pessoa. Um obstinado vê seu objetivo como verbo. Um solitário passa os dias de si para si. Um cão espera pelo dono no portão. Um fotógrafo admira o azul do céu. A cozinheira corre contra o tempo, e o presidiário tenta apressá-lo. Um estudante espera pelo futuro. Um músico rememora um acorde. Uma modelo sobe na balança.

E assim por diante: o apreço de um diante do avesso do outro.

22 de agosto de 2010

Domingo e Zé Ramalho

Depois de calejar a mão a semana inteira, finalmente é possível deitar o corpo e ver TV sem se preocupar com o tempo. Pôr o filho no colo, consertar a geladeira, jogar conversa fora, visitar os pais. Depois tem macarrão, Faustão, esportes e missa.

Lá fora faz um tempo confortável e a vigilância cuida do normal. Sonham com melhores tempos, esperam novas possibilidades. Povo feliz.

21 de agosto de 2010

O sol da manhã

Levanta-se revigorado, calça os chinelos, bebe o café, acaricia o cachorro. Vida em trabalho.

Deita-se exausto, rememora os flagelos, revê sua fé, debilita-se de novo. Vida em atalho.

O sono vem; ao fechar a porta, o estorvo: pensa em parar. Revigora-se, porém, ao abri-la de novo; e ao ver o sol entrar.

17 de agosto de 2010

Aquarela

Os livros de História dizem que ainda estaríamos grunhindo em busca de comida e calor se a vida não fosse um eterno reinventar. Para isso serve toda e qualquer tinta: para espalhar nossa ideia a partir da aquarela que dispomos.

And all that there is to say is: this painting will be our remembrance in the future.

16 de agosto de 2010

Direitos

Maria, do seu modo, sabe que o problema é grande quando direitos básicos e essenciais à vida se transformam em benefícios. 

Não é inocente a ponto de acreditar em mudanças. Ao contrário, conclui que não pode ser levado a sério um mundo onde há 50 pessoas no lotação às 7 da manhã; é assim há décadas e não se faz nada para mudar.

12 de agosto de 2010

Convicções

Quando a gripe chega forte, quando o coração ameaça parar, quando algo físico e concreto mostra sua força, o mais fiel dos crentes e o mais convicto dos céticos não têm a menor dúvida: correm ambos para a farmácia.

O primeiro, contudo, irresoluto.

10 de agosto de 2010

Temporalidade

Impressions about the adult world: today are these, tomorrow will be others.

9 de agosto de 2010

Fatos

Se os conceitos estão inseridos num contexto, é o segundo que serve de verbo. Não é óbvio, portanto, que não há verdade absoluta?

Como dois e dois são quatro, me parece claro que, entendendo isso, todo diálogo se torna mais fácil. E o mundo se resolve: a chuva cai porque é da natureza, o homem trabalha porque é conveniente, duas pessoas se apaixonam porque é da vida.

8 de agosto de 2010

Obrigações

Maria precisa de dois ônibus para atravessar a cidade, exceto aos domingos e feriados, quando os horários dos circulares mínguam.

Se a função do coletivo é transportar força de trabalho, não é à toa. Embora a placa na entrada do veículo informe que a viação existe, apenas, para facilitar a vida.

Maria, contudo, não se importa. Afinal, foi uma luta para comprar um presente para a neta. Se parar, não conseguirá cumprir sua obrigação na próxima data comemorativa.

7 de agosto de 2010

Self

Trouxe à mesa a porção de fritas, prometendo trazer a Coca-Cola em breve. Anotou mais alguns pedidos. Em meio a centenas, não pensava nas horas seguintes, quando, já no quarto, estaria sozinha. 

Percebeu que Maria havia terminado a limpeza do banheiro. Meia hora depois, seria preciso repetir o trabalho, sem que ninguém notasse, a não ser que deixasse de fazê-lo.

Porque algumas coisas são assim, só percebidas quando não acontecem.

5 de agosto de 2010

Topus

Nada resolve o dia se não houver um lugar seguro de retorno, com tudo o que há e cabe dentro. Ter para onde voltar justifica sair em busca de algo.

21 de junho de 2010

Cinza

Uma palavra tomou a frente das outras: prioridade. Já que não há como fazer tudo o que se tem a fazer, tornou-se preciso se render a ela, transformando-a em verdade absoluta.

18 de junho de 2010

In memoriam

"Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros; e que, para a maioria, é só um dia a mais".

José Saramago (1922 - 2010)

13 de junho de 2010

Quaternária

Dividindo a vida em quatro, são irmãs as partes um e quatro, bem como as duas outras.

Fica na primeira o leque de preocupações singelas: brincar na rua, escolher um time do coração, conhecer palavras novas, o luxo de se importar com coisas banais.

Às duas seguintes, é reservado o abstrato. Por ser a realidade mais complexa que a teoria, surge um leque de dúvidas. Fica a certeza de não poder jamais dar-se ao luxo de não saber das coisas grandes: as artes, o trabalho, a eloquência, a ciência. Em resumo, o que se constrói no mundo adulto.

Na última, no entanto, está de volta o singelo, que volta a fazer sentido. Todas as coisas que antes eram grandes diminuem e, no lugar, surgem as pequenas, que aumentam de importância.

Percebe-se, então, como são grandes as coisas pequenas.

11 de junho de 2010

Ínterim

Há uma corda estendida entre o macro e o micro, sobre a qual se equilibram nossas escolhas. Todas as coisas acontecem sobre esse fio delgado; por mais divisíveis que sejam, terminamos por separá-las assim: grandes e pequenas. As mais singelas estão dentro de nós, enquanto as grandes se perdem, ou se encontram, mundo afora.

Estar no ínterim dos extremos justifica, de certo modo, o leque de dúvidas existenciais que um homem carrega. Dar o passo em qualquer das direções é renunciar a direção oposta.

7 de junho de 2010

Labuta

Levanta o corpo, põe calçado, blusa e gorro. Dali para o café: meia garrafa e forte. 5h15.

Sai de casa, um cumprimento aqui, outro ali, o sol é tímido. Gotículas dão as mãos sobre carros, vidros e lixeiras. 5h45.

Chega, coloca a chave e o portão é aberto. A cozinha vem à vista, o pátio enorme, vassouras e baldes. Fecha os olhos, relembra tempos outros, tanto tempo, a juventude, os namoros, os amigos, tudo que se foi. O tempo passa. 6h20.

"Tenho 40", diz a si e começa. Água, rodo, panos, detergentes. A fumaça do cigarro lhe beija o rosto, ela traga e o calor lhe esquenta. Quer parar, mas continua. São muitos anos, não pode desistir agora. Do quê, já não sabe. 6h55.

Senta-se. Em minutos, todos chegarão para rodar a máquina que lhe paga. Tudo está em ordem, então está tudo bem. Dentro de si talvez não, mas quem se importa? 6h59.
 
Já há tanto tempo é assim que sequer questiona. Tem coisas outras a fazer. Pronto, sete em ponto. Viu? E o café, que realmente notam, sequer foi feito.

2 de junho de 2010

O que é da existência

Existir fundamenta um princípio básico: faz o mundo inteiro existir.

20 de maio de 2010

Contanto

If you want to promote your gig, go ahead.

Vão dizer: não! Vão dizer: sim! 

Mas não se importe, contanto que você o banque se, por ventura, não for o que imaginava.

13 de maio de 2010

O barco e eu

Estou no meio do mar sobre um barquinho. Faz frio, muito frio, e me irrito, pois quero voltar à terra firme.

Fechado na campânula dos dias, me sinto estranho. Tenho a nítida impressão de que o mundo gira cada vez mais rápido, e mais rápido que eu.

É quando me vem à cabeça o óbvio e os dias começam a passar devagar: se o barco está à deriva, de nada vale ter pressa. No fundo, é ao sabor do acaso que retornarei. Não há nada no oceano a não ser o barco e eu.

Se é o que me resta, é mais do que preciso.

11 de maio de 2010

Proporção

Tinha 8 anos quando pus o dedo úmido no caminho que formigas trilhavam no chão de casa. Elas se perderam, e eu descobri encantado o impacto que o obstáculo causou.

Se mantivessem a calma e dessem a volta ao redor do círculo molhado, poderiam dar sequência à rota sem tormento, profusão, esbarrões. Não conseguiram. Só tempos depois, embora minutos, mas que devem ser uma eternidade para elas, se reorganizaram.

I have the impression that, saved the rightful proportions, the adult world isn't different: um dedinho de criança é o suficiente para desprender dos trilhos a marcha dos homens.

9 de maio de 2010

O cansaço e o guarda-chuva

Parecia que não ia dar certo, que não ia se resolver. Porque ela estava exausta de não tê-lo por completo, e ele, chateado por ela não compreender o motivo.

Havia peso no caminho, sempre, em cada recriar, renascer, a cada café da manhã. Ele fazia a barba depressa, ela contava os problemas do dia anterior, ele prometia pensar no assunto, ela dizia saber que não era verdade. 

Mas, à noite, os lençóis se desarrumavam trazendo a certeza de que ainda havia motivos. "Motivos". Isso tornou-se forte, feito um ditado. "É na tempestade que se conhece o guarda-chuva".

Ele a abraçou. "Obrigado por se abrir e me abrigar". O cansaço atravessou a porta e se foi; e o abraço os abrigou do frio que, porta aberta, invadiu o lar.

8 de maio de 2010

O fio da vida e o coração

Antes havia cartas, depois e-mails e agora mensagens por celular. A vida tinha modernizado tudo, mas ambos, como se parados no tempo, conservavam o coração lá atrás, quando ainda crianças e sem interesse.

Agora era vida adulta, contas, trabalho, supermercado. O calendário corria e tudo permanecia igual. Mas, no fundo, não era bem assim, contanto que ele visse de outra forma.

Foi quando entendeu o que se passava e deitou, tranquilo, para dormir. Sem pensar. Porque já havia se convencido de que as pessoas não saem, nunca, da nossa vida. E que a teria para sempre, mesmo que não a tivesse nunca mais. Ela estava dentro de si, presa ao fio da vida. Ele sentiu-se perto; perto do coração.

7 de maio de 2010

A viagem e o retorno

Vinte anos mais jovem, ela o admirava por sua capacidade de dar atenção às coisas simples. Porque ela, para fundamentar seus sentimentos, vivia citando Rimbaud, Rainer Maria Rilke e Baudelaire. Ele dizia ser preciso, antes, cuidar do jardim. 

Duas décadas mais experiente, ele a admirava por não temer o futuro. Porque ele não dava passos sem calcular a conta no banco, o seguro da casa, as taxas nos supermercados. Gostava de ser assim, não era brigado com a vida, sentia-se seguro. No entanto, dizia a si que, se ela era ele vinte anos antes, não queria que ainda o fosse vinte anos mais tarde.

Porque sabia que estava ficando velho, chato e cinza. Talvez por isso se gostavam tanto: era ele a viagem dela, e ela, para ele, um retorno.

5 de maio de 2010

A memória e a calma

O que sobrava a ele, faltava a ela: calma para sair das situações embaraçosas. Mas ele não tinha o que era uma virtude dela, embora um tormento: uma memória irretocável.

Esquecia-se, ele, de tudo. Tinha medo da memória dela e de como ela trabalhava com os dados que ele oferecia.

Não era diferente com ela. Não se anda leve quando se carrega o fardo de lembrar-se de tudo.

Essa briga entre calma e memória deu resultado ruim: ela não se esquecia do amor e ele o esperava em outro tempo, não dava urgência.

Foi quando descobriram, juntos, que só há um remédio para essa disputa: parar o relógio. Daí para frente, bastou descobrir como fazer isso; e, ao descobrirem, bastou.

4 de maio de 2010

5x4

Um copo de café pela metade, um telefone que toca sem parar e libretos espalhados sobre a mesa. Notas, requisições, discos e livros, uma cuia de chimarrão, chaves, secante de cobalto e cola bastão.

A planilha do mês aberta, avisando que ainda há dias e dias para que maio termine. 

A porta aberta mostra o pátio solitário de fim de expediente, um inseto entra, dá um rasante e sai. Estou e não estou, às vezes penso que permaneço, em outras que nunca estive. Lembro de pessoas, da noite passada, de outras coisas, do que vivi, do que deixei de viver, da correria e de tudo, que é muito, mas é pouco. Porque sempre é bastante e exaustivo, mas sempre é o mínimo para o que é para ser.

O ventilador gira e o relógio também, contando o tempo com a frieza das máquinas. O sol desce, o dia levemente cai e a noite aos poucos chega. Parado, sentado, meço a inércia diante dos fatos e me cobro motivos. Porque, daqui, só eu não sou uma coisa.

27 de abril de 2010

Sobre amor e dor

Do calor, da saliva de cana, do barco à deriva enquanto, no fim da tarde, trabalhadores comemoram o morrer do sol. Da mulata de saia curta que atormenta o juízo masculino.  

Da cachaça de interior, que acompanha mandioca e sal a gosto. Do carrinho de sorvete que o moço empurra de chinelo surrado. Da igreja cheia de fiéis. Do momento em que um portão de fábrica se abre e todo mundo se liberta e cai no mundo e nos refúgios. Da fila de banco ou emprego. Da exposição de rostos tristes. Da luta por pão.

Porque a vida é simples, frágil, breve e única.

19 de abril de 2010

Espiando Florestan

Limpa o suor da testa com um lenço que retira do bolso do paletó. Miúdo, etíope, acena com o braço franzino para um táxi que não para. São Paulo nunca foi coisa pouca, mas agora está demais.

Dessa vez, sou eu que estou no quarto. Aqui de cima, do terceiro andar, o vejo pela janela a uma distância de mais de 40 anos.

Transporto-o dali e o coloco sentado à mesa de um bar. Ele saboreia alguns tira-gostos, puxa um papel de boca e escreve: "Ninguém fala ou cala coisas por acaso".

Então fecho a cortina e me deito. Tiro-o do bar, porque já basta. Ligo a TV, outra janela, troco canais e vejo que ali dentro tudo é mais colorido. Não ao acaso. Como também não é o cinza lá da rua, onde Fernandes, finalmente, consegue um táxi.

16 de abril de 2010

Espiando Weber

Vejo-o pela porta e espero algum movimento. Estático, ele não se move e parece incomodado.

Max faz alguns rodeios. Se com o corpo não acerta o compasso, produz pensamentos que não erram o tempo. Tornam-se atemporais também por isso. Busca uma caneta e escreve: "Neutro é quem já se decidiu pelo mais forte".

Na ponta dos pés, para que ninguém ouça o barulho de minhas ideias, apresso em sair. Um século depois, penso nesse povo que remonta os fatos e a história de maneira fria, sempre em cima do muro. E me vem à mente um sem-número de jornais e a nossa imprensa.

13 de abril de 2010

Espiando Dostoiévski

Abro a porta e o vejo em pé, de costas, olhando o céu pesado do inverno russo. Usa roupas escuras, um casaco que lhe encobre por inteiro e um chapéu. Minutos depois, caminha para o lado da sala onde está a mesa de trabalho, cheia de papeis.

Pensativo, limpa parte da mesa e escreve: "Às vezes, o homem prefere o sofrimento à paixão". E Fiódor repete a frase em voz alta. 

Quase 200 anos depois, fecho a porta e desço a escada que me leva à rua, de onde não deveria ter saído. Porque palavras, juntas, têm o poder de um exército.

10 de abril de 2010

Amor de digitígrado

Sempre cabe um abraço nos pelos da Duda, seja dia, noite ou madrugada, quente ou frio, sol ou chuva. Ela me acolhe com a língua no rosto, encostando-se em meu peito. Tudo bem que me empurra para fora da cama e nunca entrega sua bolinha, por mais que eu peça.

Objetos, mais espaço? Não preciso, porque a tenho e isso é tudo.

5 de abril de 2010

Espiando Voltaire

Abro a porta e o vejo com um riso tímido, como se lembranças boas estivessem em sua cabeça: a última cartada, a última música, o último livro, a última ideia. François-Marie pega uma caneta e escreve: "Todas as riquezas do mundo não valem um bom amigo". Simples assim, numa frase, o resumo de tudo.

Dois séculos depois, fecho a porta e saio, na ponta dos pés, pensando nos amigos que tenho. E sinto saudade das brincadeiras, do futebol até tarde da noite, dos pés sujos de rua, da infância. Anos que foram embora, soltos, com a certeza de não mais voltarem, mas que ficarão presos na memória para sempre.

31 de março de 2010

Quotidiano 5

Tirou o cinto de segurança com a dificuldade de sempre e levantou-se, uma das mãos no volante e a outra na porta. Ninguém perdeu tempo em ajudá-lo. Entrou.

As mãos trêmulas já não incomodavam, tinham se transformado em coisa comum. Afinal, as pessoas terminam por se acostumar com tudo. Encostou a barriga no balcão e pediu os remédios. Notou que estavam um pouco mais caros. Não reclamou.

Subiu na balança e conferiu ter emagrecido mais dois quilos. Imaginou ser o cigarro em excesso. Saiu.

Os dias passavam um a um e um dia deixariam de passar. Ele, no entanto, não tinha tempo nem paciência para se importar. A ciência já havia avançado o suficiente para acalmar seu espírito inquieto, seu coração fragilizado, seu corpo debilitado.

Em outras palavras, estava tudo certo. Até porque mudar agora seria trabalhoso demais, bastava-lhe o trabalho penoso e diário de viver.

28 de março de 2010

Quotidiano 4

O sol batia forte, mas ele não desistia. Continuava a lançar ao mar a esperança de voltar para casa com os peixes do dia, cada vez com mais força e cada vez para mais longe. 

Em troca de cioba, havia conseguido um ótimo vinho. Era aniversário dela, e a saudade lacrimejava os olhos.

Tantas tristezas e alegrias superadas a cada café da manhã, tanta dor nas noites ruins, tanta festa nos dias bons, tanta luta. 

Anos atrás, havia saído para o baião e a encontrara. Trouxe-a consigo ao voltar para casa. Ela ainda era a mesma, tinha o mesmo jeito de menina. Haveria de ser, sabia bem, a mesma daqui a vinte anos. A mesma de sempre e para sempre.

Maior que a certeza de peixe no mar era o amor, que já começava a mostrar uma ou outra ruga e que acalmava seu espírito inquieto, seu corpo ardido de sol. Os dias passavam um a um e um dia deixariam de passar, sabia bem. Mas não importava. Porque tinha uma casa; e dentro, havia ela; e dentro dela, um coração; e dentro, ele.

26 de março de 2010

Léxico

Sou apaixonado por palavras. Nem sempre pelo que significam, mas pelo som, pela semântica, pela história de cada uma ou pelo motivo como as conheci.

"Kitsch", por exemplo, eu adoro. É tão bonita que não sei como pode remeter ao contrário! "Blasé" segue o exemplo: é brilhante, mas seu sentido aponta o inverso.

Diferente de "porão", que me parece traduzir exatamente o que quer dizer.

"Hawaii", pronunciada na língua matriz, merece ser citada. Outra é "café", tão singela que dá vontade de parar tudo e ir buscar um. A própria palavra "palavra" é muito boa. "Perspicaz" e "concomitante" são das melhores, assim como "dialética" e "plasticidade".

"Indubitável", "mordaz", "idiossincrasia", "voyer", "touché", "clímax", "veemente" e "doravante" são de arrepiar. E "techno-pop", embora seja uma expressão e não uma palavra, é sensacional!

Amo escrever também por isso. Às vezes, uma dessas aparece e eu paro tudo só para cobiçá-la. É meio lúdico.

Aliás, "lúdico" é outra que merece destaque em meu léxico de palavras admiráveis. Hoje ela não sai da cabeça, a ponto de eu ficar repetindo-a por aí, como se faz com o refrão de uma música pop.

24 de março de 2010

Quotidiano 3

Ela preparava algo no fogão enquanto ele pensava em sair do emprego, como todo dia. Para esquecer, levantou-se e a abraçou, porque era seu remédio. Na noite anterior, como em todas as outras, havia chegado chateado. Ela havia esquentado seu prato, mas ele o trocara pela TV.

Apertava-a contra seu corpo, ela sorria, ele falava palavras doces e ela sentia seu coração bater mais forte. 

Fim de noite, olhava a carteira vazia e não conseguia encará-la, dizer que mal havia para o gás e que a gasolina estava no fim. 

Bobagem. Ela sabia de tudo isso, não precisava que lhe contasse. Para ela, bastava um abraço apertado.

"O amor usa chinelos havaianas", ela dizia. Os dias passavam um a um e um dia deixariam de passar, sabia bem. Convencia-se de que o melhor era não ter tempo nem paciência para se importar. Mudar agora seria trabalhoso demais, bastava-lhe o trabalho penoso e diário de viver.

20 de março de 2010

Take two!

Não vejo tempero nas coisas pela metade. Se é para fazer algo, que se faça bem e uma única vez. Do contrário, tem que refazer. Jamais ficará perfeito, mas é preciso que se tenha a intenção de ficar.

O mundo está cheio de coisas mal feitas, a ponto de já nem verem problema nisso.

17 de março de 2010

Quotidiano 2

Ela era inteligente, gostava de Sartre e Nelson Rodrigues. Ele era menos interessante, mas tinha o físico ideal para a noite. Como não só as palavras dizem, se convidaram em silêncio para sair.

No primeiro beijo, ela disse a si que não era o homem da sua vida. Quão grande foi a surpresa, então, quando rememorou, anos depois, aquele encontro. Haviam brigado, ele reclamara outra vez das compras exageradas de calçado. Levantou-se resmungando e foi dormir. 

Por uma primeira vez, ela pensou em deixá-lo. Mas quem cuidaria da casa, da comida, da escova de dente? E as filhas? O que diria a família?

Não. Filmes, livros, amigas, todo um mundo de cores e sentido haveria de acalmar seu espírito inquieto. Os dias passavam um a um e um dia deixariam de passar. Mudar agora seria trabalhoso demais, bastava-lhe o trabalho penoso e diário de viver.

16 de março de 2010

Quotidiano

Chegou com cheiro de cachaça no uniforme, pediu comida, sentou-se, disse duas ou três coisas e foi ao rancho.

Fumava desesperadamente. Como que para esquecer os excessos, trocava todos por um só. Ela foi atrás, reclamou da sujeira, era quase invisível, mas estava lá, por toda a casa.

— Ainda te amo, mas queria as coisas de volta, como antes.

Ele não aguentava mais. Queria trazer flores, um colar, qualquer coisa que a fizesse ver, porque era verdade, que ainda era o mesmo. Mas parava na esquina e gastava o salário em dois ou três refúgios.

Esboçou dizer algo. Queria contar que ainda a amava, porque ela era sempre a mesma, um pouco mais brava em alguns dias, mais calma em outros, mas a mesma. Era perfeita e o mais importante, era sua.

Não disse nada. Terminou outro cigarro, entrou, deitou-se e dormiu no sofá. Tomou banho na manhã seguinte, fez a barba depressa e voltou ao trabalho, com o velho uniforme surrado de todos os dias.

Ontem, quando chegou, era como se não estivesse em casa. Hoje, quando partiu, só gostaria de ficar.

Queria mudar, mas mudar agora seria trabalhoso demais, bastava-lhe o trabalho penoso e diário de viver.

13 de março de 2010

A próxima chuva

Um avião sobrevoa a cidade, carros passam e deixam monóxido de carbono. No céu, o cruzeiro do sul, a poeira interestelar e um sem-número de coisas encobertas por nuvens que se formam. No muro em frente, a escrita de uma empresa já apagada pelo tempo.

Outro avião. Desde o último, o relógio girou 30 minutos. Ouve-se o som de rádios ligados e um burburinho infantil no carrinho de lanches mais próximo. Cachorros brincam na esquina, e o vento sopra suave.

O avião leva gente e leva guerras. O relógio conta mais 30 minutos, que não voltam mais. Com o tempo, um pedaço da vida. Melhor seria estar no avião?

Nada disso. Às vezes, esperar pela próxima chuva é só o que importa.

7 de março de 2010

O belo e o feio

Não tenho talento para definir o que é belo e o que é feio, mas algumas coisas me parecem óbvias.

A feiura está sempre fora da coisa em si: uma pessoa que não lê, um mestre que não se importa com a aula, um profissional que chega ao trabalho com a ferramenta em mau estado.

A beleza, ao contrário, é intrínseca. Todo bom dia, independente de que vem, é bonito. Toda pessoa que sorri. Até no rabinho do cachorro ela é sempiterna. A beleza é dona de quem a tem e jamais sai de viagem.

Por fim, uma verdade vale nota: a concepção de belo e feio não passa pelos olhos. Qualquer criança, ao ler O Pequeno Príncipe, aprende isso e carrega para a vida.

3 de março de 2010

Eu olho (talvez). Ela vê

Não são do mesmo mundo um professor marxista e um jovem que estuda economia na GWU, próximo à Casa Branca. Também não estão do mesmo lado um ativista ambiental e um organizador de rodeios, Richard Dawkins e Joseph Ratzinger. Tudo muito óbvio.

Uma pessoa que amo sentou-se hoje no quintal e descascou uma laranja, separando as sementes com o olhar distante. Na correria, parei para observá-la e ganhei o dia.

O que pensava, eu sei, nada tinha a ver com Washington ou o papa. Era mais importante. Um coração assim é a coisa mais preciosa do mundo, cujo mistério não sabemos, embora teorias, igrejas e outras bobagens digam que sim.

19 de fevereiro de 2010

Resquício

Foi em 3 de maio de 1992, eu tinha sete anos e participava de uma marcha na praça central da cidade onde cresci — sem ter, é claro, a menor noção disso. Com mais 30 ou 40 crianças, formava um bloco chamado União Uniformizada e seguia em direção ao coreto. Vestia um calção que cobria os joelhos e a camiseta do São Paulo, em meio a tantas de outros clubes de futebol.

Pouco antes de chegar à praça, onde estavam centenas de pessoas, fomos orientados a seguir em linha reta, cabeça erguida e espinha ereta. Em todo o percurso, haveria só uma pausa, breve, para saudar autoridades. Terminado o cortejo, estaríamos dispensados.

Muitos anos depois, li "A Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera, e aprendi que uma marcha nunca é só uma marcha. Acima de tudo, é a simbologia de algo. A obra fala de Praga, mas há símbolos que são universais, assim como a seguinte práxis: "A vida ordinária de pessoas comuns e a vida extraordinária da história". Nada simboliza isso tão bem quanto uma marcha rumo às autoridades de um determinado lugar.

Volto a 92. Aquele bloco não significava a união pacífica das torcidas de futebol. Era, antes de tudo, uma marcha que saudava homens públicos, políticos, militares e eclesiásticos, embora jamais divulgado assim. Obediente, inocente e pacífica: uma marcha que atraía flashes e registrava a hierarquia pública da época, com o passo militar cadenciado por notas rítmicas de fanfarras.

Estamos muitos anos à frente e muita coisa mudou. Daquela manhã, só restaram algumas fotos no álbum de infância. Mas se as fotografias permanecem iguais, com a peculiar capacidade de congelar o tempo, é porque há coisas que nunca mudam. Uma marcha, por exemplo, nunca deixará de ser uma marcha.

10 de fevereiro de 2010

O mundo embaixo da porta

Toda manhã chega em casa um resumo do dia anterior. O mesmo acontece no trabalho, em diferente versão, mas igualmente óbvia. Quase sempre com o anúncio da última tragédia, amenizado pela foto da estrela pop do momento.

Violência, esporte, política, lazer: cada caderno traz as novas do dia. Uma ponte que ficou pronta, um teatro, a água que não para de descer ou teima em subir. Quadrinhos trazem diversão, inúmeras propagandas colorem, é quase uma feira.

Todo dia é a mesma coisa, o mundo muda a todo instante e há coisas que nunca mudam. "E o principal fica fora do resumo", como Humberto Gessinger canta.

25 de janeiro de 2010

Fim do dia

Cessa a chuva e os galhos balançam no topo das árvores, parecem sorrir. Um vento suave e ateu dobra as paredes, chega e purifica mais um dia de trabalho.

É começo de semana e só me resta ir para casa. Um cachorro me espera, um sofá, demais amores. As segundas nem sempre são perfeitas, têm o azar de caírem após os domingos, mas gosto delas. Se todo fim de tarde fosse assim, não precisaria sequer de música. Porque me basta este céu, onde o vento sopra sem pecado e a água ameaça cair de novo, agora levemente, porque tudo já está limpo.

22 de janeiro de 2010

130

Cansado de se perder no ponteiro dos minutos, um amigo disse que já não o olha mais. Quando chega a hora, sempre alguém avisa. Já outro anota todos os compromissos, com os horários cortados a cada meia hora. Sobra até um tempinho para o lanche.

Qual deles tem o dia na mão?

5 de janeiro de 2010

2010

Começado o ano no calendário, ontem também começou no trabalho. E hoje começa aqui no blog. Que seja um ano bom!