30 de maio de 2011

Um par de meias

Três da manhã, acordou com a parede escura presa aos olhos. Tinha tanta coisa na cabeça que mal podia pensar. O controle remoto sem pilha, aquela visita à mãe que ficou para ontem e não deu.

Mais três horas e precisaria consertar aquela peça, ao preço de quatro anos de serviço.

Pensou em levantar-se, mas desistiu ao sentir um pé de meia encostando em sua perna. Lembrou-se, então, que para tudo havia um sentido. Riu de si. Respondeu ao toque e ouviu o gemido inconsciente de toda noite. Dois pés juntos, um par de meias, e estava pronto para outro dia.

9 de maio de 2011

Perguntas

— O que você acha?

Inquietou-se. Sentada, brincava com o canudo na Coca-Cola, enquanto esperava o lanche e mexia no celular. Ele, ali desde antes de ela chegar, não parecia inconveniente, embora houvesse lhe feito uma pergunta! Havia tanto tempo que ninguém lhe perguntava nada que até estranhou. 

Era tímida e passava o dia nas redes sociais. Num mundo onde ninguém faz perguntas, é tão raro falar de si que as pessoas passam horas respondendo perguntas não-feitas, "achei a novela muito boa". Ela sabia que ele, decerto, já havia entendido: ela era sozinha. Bonita, mas solitária.

— É justamente o que penso.

E passou a falar qualquer bobagem, enquanto ela dizia a si que nada disso era preciso. "Palavras: quanta coisa se perde entre elas!", repetia, em pensamento. Veio o lanche e ela comeu apenas escutando, embora sem prestar muita atenção. Talvez porque ele dizia e dizia, mas não ouvia. Assim, era melhor ver o que a internet trazia de novo.

4 de maio de 2011

O lado humano do rei

A retórica da batina, a caneta do jornalista, o microfone da política, qualquer que seja — por trás de cada palavra, a entrega: estamos no mundo da incomunicabilidade, e só a palavra não basta.

Porque não há ninguém que seja mais ou menos homem que ninguém: entre os iguais, o que diferencia uns dos outros é a intensidade com que se busca uma resposta — ou, entre os mais sábios, uma pergunta.

Talvez por isso, mas não só por isso, as instituições são tão falhas: embora queiram estar acima dos limites humanos, de acerto e erro, são feitas por gente, guiada por uma razão construída historicamente.

Saramago dizia sem dizer: a verdade depende de qual lado da mesa você está sentado.