27 de abril de 2010

Sobre amor e dor

Do calor, da saliva de cana, do barco à deriva enquanto, no fim da tarde, trabalhadores comemoram o morrer do sol. Da mulata de saia curta que atormenta o juízo masculino.  

Da cachaça de interior, que acompanha mandioca e sal a gosto. Do carrinho de sorvete que o moço empurra de chinelo surrado. Da igreja cheia de fiéis. Do momento em que um portão de fábrica se abre e todo mundo se liberta e cai no mundo e nos refúgios. Da fila de banco ou emprego. Da exposição de rostos tristes. Da luta por pão.

Porque a vida é simples, frágil, breve e única.

19 de abril de 2010

Espiando Florestan

Limpa o suor da testa com um lenço que retira do bolso do paletó. Miúdo, etíope, acena com o braço franzino para um táxi que não para. São Paulo nunca foi coisa pouca, mas agora está demais.

Dessa vez, sou eu que estou no quarto. Aqui de cima, do terceiro andar, o vejo pela janela a uma distância de mais de 40 anos.

Transporto-o dali e o coloco sentado à mesa de um bar. Ele saboreia alguns tira-gostos, puxa um papel de boca e escreve: "Ninguém fala ou cala coisas por acaso".

Então fecho a cortina e me deito. Tiro-o do bar, porque já basta. Ligo a TV, outra janela, troco canais e vejo que ali dentro tudo é mais colorido. Não ao acaso. Como também não é o cinza lá da rua, onde Fernandes, finalmente, consegue um táxi.

16 de abril de 2010

Espiando Weber

Vejo-o pela porta e espero algum movimento. Estático, ele não se move e parece incomodado.

Max faz alguns rodeios. Se com o corpo não acerta o compasso, produz pensamentos que não erram o tempo. Tornam-se atemporais também por isso. Busca uma caneta e escreve: "Neutro é quem já se decidiu pelo mais forte".

Na ponta dos pés, para que ninguém ouça o barulho de minhas ideias, apresso em sair. Um século depois, penso nesse povo que remonta os fatos e a história de maneira fria, sempre em cima do muro. E me vem à mente um sem-número de jornais e a nossa imprensa.

13 de abril de 2010

Espiando Dostoiévski

Abro a porta e o vejo em pé, de costas, olhando o céu pesado do inverno russo. Usa roupas escuras, um casaco que lhe encobre por inteiro e um chapéu. Minutos depois, caminha para o lado da sala onde está a mesa de trabalho, cheia de papeis.

Pensativo, limpa parte da mesa e escreve: "Às vezes, o homem prefere o sofrimento à paixão". E Fiódor repete a frase em voz alta. 

Quase 200 anos depois, fecho a porta e desço a escada que me leva à rua, de onde não deveria ter saído. Porque palavras, juntas, têm o poder de um exército.

10 de abril de 2010

Amor de digitígrado

Sempre cabe um abraço nos pelos da Duda, seja dia, noite ou madrugada, quente ou frio, sol ou chuva. Ela me acolhe com a língua no rosto, encostando-se em meu peito. Tudo bem que me empurra para fora da cama e nunca entrega sua bolinha, por mais que eu peça.

Objetos, mais espaço? Não preciso, porque a tenho e isso é tudo.

5 de abril de 2010

Espiando Voltaire

Abro a porta e o vejo com um riso tímido, como se lembranças boas estivessem em sua cabeça: a última cartada, a última música, o último livro, a última ideia. François-Marie pega uma caneta e escreve: "Todas as riquezas do mundo não valem um bom amigo". Simples assim, numa frase, o resumo de tudo.

Dois séculos depois, fecho a porta e saio, na ponta dos pés, pensando nos amigos que tenho. E sinto saudade das brincadeiras, do futebol até tarde da noite, dos pés sujos de rua, da infância. Anos que foram embora, soltos, com a certeza de não mais voltarem, mas que ficarão presos na memória para sempre.