26 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte final)

Castor pede licença e entra. Atrás da mesa, uma senhora educada e ao lado a jovem que levou para a cama na noite anterior, em pensamento. As duas esboçam sorrisos mecânicos.

A primeira começa a falar enquanto a segunda lhe traz documentos. Elogiam sua disciplina e dizem que a empresa é grata por todo o serviço prestado. Comunicam, enfim, que é preciso remanejar o quadro de funcionários.

Castor entende o recado: está sendo demitido. Seus serviços já não são necessários, é preciso substituir o velho pelo novo.

Questiona o motivo, pede para conversar com o encarregado do setor, "aquele menino que entrou aqui há pouco". Não adianta, querem apenas que assine o papel e retorne para casa. Há trabalho para quem permanece.

Castor segura a caneta e escreve seu nome no lugar indicado. Suas mãos tremulam, mas as mulheres fingem não ver. Batem o carimbo, prometem lhe pagar tudo o mais rápido possível.

Ele volta para o portão e por uma primeira vez coloca os pés na rua antes da hora do almoço. Um pouco desorientado, retorna ao ponto de ônibus. Senta-se de cabeça baixa à espera do próximo circular. Apesar de magoado, se acalma.

Por fim, o velho Castor chega em casa, se joga no sofá e tira seu sapato apertado. Catarina está na cozinha e não o percebe. Ele não sabe o que dizer a ela quando se encontrarem. Ao menos, não passou no bar para beber.

O desânimo ameaça lhe abater, mas ele é forte o suficiente para não permitir que isso aconteça. Para ludibriar os pensamentos, diz a si que ao menos da próxima vez poderá acompanhá-la na feira e escolher, ele mesmo, seus espinafres.

25 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 8)

A segunda-feira chega e o mundo recomeça. Na mesa do café, Castor come pão com margarina e bebe leite com chocolate em pó. 

Catarina comenta qualquer coisa, mas ele não ouve. Está com o trabalho na cabeça e não tem ouvidos para outra coisa. Come rápido antes de enfrentar o ônibus lotado.

Quando sobe no veículo, cumprimenta velhos conhecidos. As valetas são horríveis, mas não reclama: faz o trajeto todo dia e antevê os pontos ruins. Percebe que o número de passageiros jovens tem aumentado e diz a si que é por causa das novas exigências do mercado. É preciso custear estudos e sonhos.

Termina por pensar que, anos mais tarde, serão todos velhos conhecidos. É ruim vender a vida inteira por poucos salários, mas nem todos têm a sorte de tornar as coisas diferentes. Acontece.

Quando enfim chega ao emprego, não lhe deixam bater o cartão. Castor acha isso estranho, afinal, há anos faz o gesto sem que ninguém o interrompa. 

— Dona Odete quer falar com o senhor.

Vai até Dona Odete, convencido de que deve ser o aviso sobre mais um desses treinamentos de hoje em dia. "Antes era diferente, todo mundo trabalhava mais", pensa. Quase de modo automático, rememora todo o tempo que está ali.

24 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 7)

Pouco antes de dormir, Castor faz uma reflexão sobre o dia. Toda noite é da mesma forma, traz à memória o emprego, a família, a saúde, e dorme em paz.

Mas dessa vez está com peso na consciência. Tem Catarina ao lado, mas não pensa nela. Pensa na nova menina da fábrica. Ela trabalha no escritório, mas vai à produção levar documentos. É uma jovem de 20 e poucos anos, tem os cabelos pretos e a pele clarinha.

Todos os homens da fábrica a admiram, mas Castor faz do gesto uma prova de sua sinceridade peculiar. Quando a vê, imagina sua nudez. No começo ficava envergonhado de si, mas depois passou a separar o fato de suas intenções. Porém, agora é diferente: nunca havia trazido a ideia para a cama. Que ideia atroz!

Sente-se infeliz por aquele momento e diz a si que tudo é culpa da rotina de tantos anos. Mas mantém-se firme. Amanhã tem muito trabalho e não é hora de pensar em bobagens, mas de descansar.

19 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 6)

Castor não é católico fervoroso, está longe de ser, mas acompanha a esposa às missas e cumpre os rituais da paróquia.

É verdade, sente alívio toda vez que o compromisso termina. Não gosta de como as pessoas o olham enquanto reza e chateia-se com isso.

Catarina diz que não é certo ter menos fé por esse motivo, mas ele não consegue ser diferente. Quando retorna, busca algum tira-gosto e liga a TV, como sempre. Tem a impressão de assistir a mesma atração da última semana. Mas é outra, embora a fórmula seja a mesma.

17 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 5)

Castor acorda e caminha para o café. Catarina está lá fora conversando com os vizinhos. Ele come devagar. Pela janela, olha para ela e sente-se bem em tê-la ao lado.

Ela entra e comenta sobre o último caso do bairro. Castor não tem a menor vontade de saber da vida alheia, pensa em dizer algo a respeito, mas se mantém calado.

Nota movimentos do lado de fora e percebe que o jornal chegou. Senta-se na sala entretido com a leitura. Um jornal e vários programas de TV depois, sente o cheiro vindo da cozinha. O almoço está pronto: macarrão, molho vermelho e Coca-Cola. Come em demasia, volta ao sofá e dorme até a hora do futebol.

O relógio o desperta. Programou-se para acordar no momento exato da partida. Pede para a esposa preparar pipoca, se levanta e busca cerveja.

Quando o jogo termina em 0 a 0, fica frustrado. Uma semana de espera para a partida terminar assim, empatada. Reclama sozinho e diz que aqueles jogadores não merecem o dinheiro que ganham. "Pernas de pau", resmunga e vai ao banho, enquanto Catarina lhe apressa, pois já estão atrasados para a igreja.

16 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 4)

É sábado e Castor acorda mais tranquilo. Há coisas a fazer: o ferro de passar precisa de reparos e a pia do banheiro de conserto. Gasta a manhã em afazeres domésticos e senta-se para o almoço. Percebe que Catarina ainda está na bronca e se resume a falar só o necessário. Ela, ao contrário, fala bastante. 

— As meninas chegaram pouco antes de o sol nascer.

Castor reflete que isso não está certo, mas nada diz. No fundo, sabe que Catarina se encarregará de mantê-las na linha. Vai fazer a barba e apara o velho bigode. 

A noite chega e ele se desmonta no sofá. As filhas conversam e a esposa dorme com o cachorro no colo. Faz de tudo para não acordá-la, pega o controle-remoto e troca o canal.

Mas Catarina acorda, muda, e vai para o banho. Castor rememora momentos em que isso não acontecia sem que estivessem juntos. Mas diz a si que o tempo passou e que já estão velhos demais para amar feito jovens. Abandona os pensamentos; começa seu noticiário predileto.

Já na cama, pensa em abraçá-la, mas se contém. Pergunta a si o motivo e não consegue responder.

11 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 3)

Ao voltar para casa, tropeça na porta ao entrar. Reclama do chão mais acentuado naquele local e promete dar um jeito naquilo. Está bêbado e Catarina lhe dá broncas e mais broncas por causa disso. Ele permanece calado o tempo todo, pois sabe que está errado e nada pode fazer.

Suas filhas se despendem, vão para a noite, pedindo para que ambos parem. Catarina diz a elas que não os amolem, afinal, ainda são crianças e aquilo é coisa de adulto. Mas já não são crianças, e ela sabe disso, só não quer admitir.

Castor vai ao quarto e despenca na cama, com a esposa lhe atormentando atrás. Ela diz que o ama por tudo o que há na casa, mas que sua tibieza esmorece o lar. Se o elogia no atacado, critica no varejo.

Mas ele nada ouve e devagar o sono começa a vir. Esse momento é maravilhoso, quase sublime, afinal, ao mesmo tempo, a voz nervosa de Catarina vai sumindo aos poucos.

8 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor (parte 2)

Quando acorda, sente uma alegria singular, afinal, é sexta-feira. Foi uma semana difícil, mas, como a vida inteira aprendeu que o trabalho dignifica o homem, não reclama. Para ele, é quase um pecado.

No café, come pão com margarina e bebe leite com chocolate em pó. Catarina comenta que é dia de supermercado; ele entende o recado e abre a carteira. Ainda é meio de mês, mas já é preciso refazer as contas. Ela pergunta o que quer da feira e ele pede espinafres.

Suas filhas acordam para a escola e pedem dinheiro para a noite. Havia separado alguns trocados para o bar, mas entrega a elas. 

O desânimo ameaça chegar, mas Castor termina por se lembrar que há "happy hour" com os amigos após o expediente. Além disso, o domingo está chegando, com o futebol na TV. Levanta-se revigorado, mesmo com a esposa cobrando para não beber em demasia ao voltar.

7 de outubro de 2010

Sobre os valores de Castor

O velho Castor se joga no sofá e tira o sapato. Reclama que está apertado e pede café. Na sala, as duas filhas conversam sobre a escola. Atrás de si, Catarina, sua esposa há 20 anos, mantém o rosto fechado.

Uma das meninas, Carina, vai buscar a bebida, enquanto Catarina lhe cobra que pare com o álcool. Diz que mesmo o café já não tira o cheiro ruim de sua boca e que pretende deixá-lo, caso as coisas continuem assim. Está blefando, e ambos sabem disso.

Patrícia, a caçula, mostra aos dois um toque novo que pôs no celular. É a música de uma nova boyband, e ele diz a si que as músicas de hoje já não são como as de antigamente. Quando o café chega, liga a TV e coloca em seu canal favorito. É um dos momentos mais aguardados do dia, e ele saboreia cada imagem como se fosse única, embora saiba que são todas iguais.

O cão de estimação late querendo entrar, Castor autoriza e sua esposa abre a porta. O bicho pula no sofá. Passa horas vendo TV, fazendo cafuné no felpudo. De tempos em tempos, grita para a esposa e ela, da cozinha, lhe traz tira-gostos.

Quando termina o programa, vai ao quarto deitar-se, pois é quinta-feira e no dia seguinte, já cedo, será preciso pegar dois ônibus para o trabalho.