31 de março de 2010

Quotidiano 5

Tirou o cinto de segurança com a dificuldade de sempre e levantou-se, uma das mãos no volante e a outra na porta. Ninguém perdeu tempo em ajudá-lo. Entrou.

As mãos trêmulas já não incomodavam, tinham se transformado em coisa comum. Afinal, as pessoas terminam por se acostumar com tudo. Encostou a barriga no balcão e pediu os remédios. Notou que estavam um pouco mais caros. Não reclamou.

Subiu na balança e conferiu ter emagrecido mais dois quilos. Imaginou ser o cigarro em excesso. Saiu.

Os dias passavam um a um e um dia deixariam de passar. Ele, no entanto, não tinha tempo nem paciência para se importar. A ciência já havia avançado o suficiente para acalmar seu espírito inquieto, seu coração fragilizado, seu corpo debilitado.

Em outras palavras, estava tudo certo. Até porque mudar agora seria trabalhoso demais, bastava-lhe o trabalho penoso e diário de viver.

28 de março de 2010

Quotidiano 4

O sol batia forte, mas ele não desistia. Continuava a lançar ao mar a esperança de voltar para casa com os peixes do dia, cada vez com mais força e cada vez para mais longe. 

Em troca de cioba, havia conseguido um ótimo vinho. Era aniversário dela, e a saudade lacrimejava os olhos.

Tantas tristezas e alegrias superadas a cada café da manhã, tanta dor nas noites ruins, tanta festa nos dias bons, tanta luta. 

Anos atrás, havia saído para o baião e a encontrara. Trouxe-a consigo ao voltar para casa. Ela ainda era a mesma, tinha o mesmo jeito de menina. Haveria de ser, sabia bem, a mesma daqui a vinte anos. A mesma de sempre e para sempre.

Maior que a certeza de peixe no mar era o amor, que já começava a mostrar uma ou outra ruga e que acalmava seu espírito inquieto, seu corpo ardido de sol. Os dias passavam um a um e um dia deixariam de passar, sabia bem. Mas não importava. Porque tinha uma casa; e dentro, havia ela; e dentro dela, um coração; e dentro, ele.

26 de março de 2010

Léxico

Sou apaixonado por palavras. Nem sempre pelo que significam, mas pelo som, pela semântica, pela história de cada uma ou pelo motivo como as conheci.

"Kitsch", por exemplo, eu adoro. É tão bonita que não sei como pode remeter ao contrário! "Blasé" segue o exemplo: é brilhante, mas seu sentido aponta o inverso.

Diferente de "porão", que me parece traduzir exatamente o que quer dizer.

"Hawaii", pronunciada na língua matriz, merece ser citada. Outra é "café", tão singela que dá vontade de parar tudo e ir buscar um. A própria palavra "palavra" é muito boa. "Perspicaz" e "concomitante" são das melhores, assim como "dialética" e "plasticidade".

"Indubitável", "mordaz", "idiossincrasia", "voyer", "touché", "clímax", "veemente" e "doravante" são de arrepiar. E "techno-pop", embora seja uma expressão e não uma palavra, é sensacional!

Amo escrever também por isso. Às vezes, uma dessas aparece e eu paro tudo só para cobiçá-la. É meio lúdico.

Aliás, "lúdico" é outra que merece destaque em meu léxico de palavras admiráveis. Hoje ela não sai da cabeça, a ponto de eu ficar repetindo-a por aí, como se faz com o refrão de uma música pop.

24 de março de 2010

Quotidiano 3

Ela preparava algo no fogão enquanto ele pensava em sair do emprego, como todo dia. Para esquecer, levantou-se e a abraçou, porque era seu remédio. Na noite anterior, como em todas as outras, havia chegado chateado. Ela havia esquentado seu prato, mas ele o trocara pela TV.

Apertava-a contra seu corpo, ela sorria, ele falava palavras doces e ela sentia seu coração bater mais forte. 

Fim de noite, olhava a carteira vazia e não conseguia encará-la, dizer que mal havia para o gás e que a gasolina estava no fim. 

Bobagem. Ela sabia de tudo isso, não precisava que lhe contasse. Para ela, bastava um abraço apertado.

"O amor usa chinelos havaianas", ela dizia. Os dias passavam um a um e um dia deixariam de passar, sabia bem. Convencia-se de que o melhor era não ter tempo nem paciência para se importar. Mudar agora seria trabalhoso demais, bastava-lhe o trabalho penoso e diário de viver.

20 de março de 2010

Take two!

Não vejo tempero nas coisas pela metade. Se é para fazer algo, que se faça bem e uma única vez. Do contrário, tem que refazer. Jamais ficará perfeito, mas é preciso que se tenha a intenção de ficar.

O mundo está cheio de coisas mal feitas, a ponto de já nem verem problema nisso.

17 de março de 2010

Quotidiano 2

Ela era inteligente, gostava de Sartre e Nelson Rodrigues. Ele era menos interessante, mas tinha o físico ideal para a noite. Como não só as palavras dizem, se convidaram em silêncio para sair.

No primeiro beijo, ela disse a si que não era o homem da sua vida. Quão grande foi a surpresa, então, quando rememorou, anos depois, aquele encontro. Haviam brigado, ele reclamara outra vez das compras exageradas de calçado. Levantou-se resmungando e foi dormir. 

Por uma primeira vez, ela pensou em deixá-lo. Mas quem cuidaria da casa, da comida, da escova de dente? E as filhas? O que diria a família?

Não. Filmes, livros, amigas, todo um mundo de cores e sentido haveria de acalmar seu espírito inquieto. Os dias passavam um a um e um dia deixariam de passar. Mudar agora seria trabalhoso demais, bastava-lhe o trabalho penoso e diário de viver.

16 de março de 2010

Quotidiano

Chegou com cheiro de cachaça no uniforme, pediu comida, sentou-se, disse duas ou três coisas e foi ao rancho.

Fumava desesperadamente. Como que para esquecer os excessos, trocava todos por um só. Ela foi atrás, reclamou da sujeira, era quase invisível, mas estava lá, por toda a casa.

— Ainda te amo, mas queria as coisas de volta, como antes.

Ele não aguentava mais. Queria trazer flores, um colar, qualquer coisa que a fizesse ver, porque era verdade, que ainda era o mesmo. Mas parava na esquina e gastava o salário em dois ou três refúgios.

Esboçou dizer algo. Queria contar que ainda a amava, porque ela era sempre a mesma, um pouco mais brava em alguns dias, mais calma em outros, mas a mesma. Era perfeita e o mais importante, era sua.

Não disse nada. Terminou outro cigarro, entrou, deitou-se e dormiu no sofá. Tomou banho na manhã seguinte, fez a barba depressa e voltou ao trabalho, com o velho uniforme surrado de todos os dias.

Ontem, quando chegou, era como se não estivesse em casa. Hoje, quando partiu, só gostaria de ficar.

Queria mudar, mas mudar agora seria trabalhoso demais, bastava-lhe o trabalho penoso e diário de viver.

13 de março de 2010

A próxima chuva

Um avião sobrevoa a cidade, carros passam e deixam monóxido de carbono. No céu, o cruzeiro do sul, a poeira interestelar e um sem-número de coisas encobertas por nuvens que se formam. No muro em frente, a escrita de uma empresa já apagada pelo tempo.

Outro avião. Desde o último, o relógio girou 30 minutos. Ouve-se o som de rádios ligados e um burburinho infantil no carrinho de lanches mais próximo. Cachorros brincam na esquina, e o vento sopra suave.

O avião leva gente e leva guerras. O relógio conta mais 30 minutos, que não voltam mais. Com o tempo, um pedaço da vida. Melhor seria estar no avião?

Nada disso. Às vezes, esperar pela próxima chuva é só o que importa.

7 de março de 2010

O belo e o feio

Não tenho talento para definir o que é belo e o que é feio, mas algumas coisas me parecem óbvias.

A feiura está sempre fora da coisa em si: uma pessoa que não lê, um mestre que não se importa com a aula, um profissional que chega ao trabalho com a ferramenta em mau estado.

A beleza, ao contrário, é intrínseca. Todo bom dia, independente de que vem, é bonito. Toda pessoa que sorri. Até no rabinho do cachorro ela é sempiterna. A beleza é dona de quem a tem e jamais sai de viagem.

Por fim, uma verdade vale nota: a concepção de belo e feio não passa pelos olhos. Qualquer criança, ao ler O Pequeno Príncipe, aprende isso e carrega para a vida.

3 de março de 2010

Eu olho (talvez). Ela vê

Não são do mesmo mundo um professor marxista e um jovem que estuda economia na GWU, próximo à Casa Branca. Também não estão do mesmo lado um ativista ambiental e um organizador de rodeios, Richard Dawkins e Joseph Ratzinger. Tudo muito óbvio.

Uma pessoa que amo sentou-se hoje no quintal e descascou uma laranja, separando as sementes com o olhar distante. Na correria, parei para observá-la e ganhei o dia.

O que pensava, eu sei, nada tinha a ver com Washington ou o papa. Era mais importante. Um coração assim é a coisa mais preciosa do mundo, cujo mistério não sabemos, embora teorias, igrejas e outras bobagens digam que sim.