19 de fevereiro de 2010

Resquício

Foi em 3 de maio de 1992, eu tinha sete anos e participava de uma marcha na praça central da cidade onde cresci — sem ter, é claro, a menor noção disso. Com mais 30 ou 40 crianças, formava um bloco chamado União Uniformizada e seguia em direção ao coreto. Vestia um calção que cobria os joelhos e a camiseta do São Paulo, em meio a tantas de outros clubes de futebol.

Pouco antes de chegar à praça, onde estavam centenas de pessoas, fomos orientados a seguir em linha reta, cabeça erguida e espinha ereta. Em todo o percurso, haveria só uma pausa, breve, para saudar autoridades. Terminado o cortejo, estaríamos dispensados.

Muitos anos depois, li "A Insustentável Leveza do Ser", de Milan Kundera, e aprendi que uma marcha nunca é só uma marcha. Acima de tudo, é a simbologia de algo. A obra fala de Praga, mas há símbolos que são universais, assim como a seguinte práxis: "A vida ordinária de pessoas comuns e a vida extraordinária da história". Nada simboliza isso tão bem quanto uma marcha rumo às autoridades de um determinado lugar.

Volto a 92. Aquele bloco não significava a união pacífica das torcidas de futebol. Era, antes de tudo, uma marcha que saudava homens públicos, políticos, militares e eclesiásticos, embora jamais divulgado assim. Obediente, inocente e pacífica: uma marcha que atraía flashes e registrava a hierarquia pública da época, com o passo militar cadenciado por notas rítmicas de fanfarras.

Estamos muitos anos à frente e muita coisa mudou. Daquela manhã, só restaram algumas fotos no álbum de infância. Mas se as fotografias permanecem iguais, com a peculiar capacidade de congelar o tempo, é porque há coisas que nunca mudam. Uma marcha, por exemplo, nunca deixará de ser uma marcha.