30 de agosto de 2010

Berenice e o relógio

Quando o relógio da cozinha desperta, Berenice sabe que todos chegarão para o almoço: o marido do trabalho e as filhas do colégio. Então pede dinheiro para o mercado e comenta que há telefone para pagar, além de parcelas do veículo, IPTU, escola etc. 

Todos se levantam apressados, ela se chateia com o tempo, o acha ignóbil, e tudo se fecha. Não percebe o óbvio: reclama do que não há como impedir e aceita o que poderia ser evitado.

27 de agosto de 2010

Berenice e a janela

Pela janela, Berenice vê a rua. Dois namorados se abraçam no portão; e o mundo se resolve.

26 de agosto de 2010

Berenice e a caixa

Dentro da caixa, há mais cores do que nas prateleiras do mercado. Lá dentro, tudo é calculado e a verdade é entrecortada, afinal, a exatidão dos fatos precisa ser editada para ser convincente.

Berenice não distingue: aquilo é um retrato das coisas ou a vida é um retrato daquilo? Não percebe o óbvio: ali não se retrata as coisas como elas são. Nada é neutro: linhas editoriais sempre irão ferir alguém.

24 de agosto de 2010

Cânone

Um romântico olha nos olhos de outra pessoa. Um obstinado vê seu objetivo como verbo. Um solitário passa os dias de si para si. Um cão espera pelo dono no portão. Um fotógrafo admira o azul do céu. A cozinheira corre contra o tempo, e o presidiário tenta apressá-lo. Um estudante espera pelo futuro. Um músico rememora um acorde. Uma modelo sobe na balança.

E assim por diante: o apreço de um diante do avesso do outro.

22 de agosto de 2010

Domingo e Zé Ramalho

Depois de calejar a mão a semana inteira, finalmente é possível deitar o corpo e ver TV sem se preocupar com o tempo. Pôr o filho no colo, consertar a geladeira, jogar conversa fora, visitar os pais. Depois tem macarrão, Faustão, esportes e missa.

Lá fora faz um tempo confortável e a vigilância cuida do normal. Sonham com melhores tempos, esperam novas possibilidades. Povo feliz.

21 de agosto de 2010

O sol da manhã

Levanta-se revigorado, calça os chinelos, bebe o café, acaricia o cachorro. Vida em trabalho.

Deita-se exausto, rememora os flagelos, revê sua fé, debilita-se de novo. Vida em atalho.

O sono vem; ao fechar a porta, o estorvo: pensa em parar. Revigora-se, porém, ao abri-la de novo; e ao ver o sol entrar.

17 de agosto de 2010

Aquarela

Os livros de História dizem que ainda estaríamos grunhindo em busca de comida e calor se a vida não fosse um eterno reinventar. Para isso serve toda e qualquer tinta: para espalhar nossa ideia a partir da aquarela que dispomos.

And all that there is to say is: this painting will be our remembrance in the future.

16 de agosto de 2010

Direitos

Maria, do seu modo, sabe que o problema é grande quando direitos básicos e essenciais à vida se transformam em benefícios. 

Não é inocente a ponto de acreditar em mudanças. Ao contrário, conclui que não pode ser levado a sério um mundo onde há 50 pessoas no lotação às 7 da manhã; é assim há décadas e não se faz nada para mudar.

12 de agosto de 2010

Convicções

Quando a gripe chega forte, quando o coração ameaça parar, quando algo físico e concreto mostra sua força, o mais fiel dos crentes e o mais convicto dos céticos não têm a menor dúvida: correm ambos para a farmácia.

O primeiro, contudo, irresoluto.

10 de agosto de 2010

Temporalidade

Impressions about the adult world: today are these, tomorrow will be others.

9 de agosto de 2010

Fatos

Se os conceitos estão inseridos num contexto, é o segundo que serve de verbo. Não é óbvio, portanto, que não há verdade absoluta?

Como dois e dois são quatro, me parece claro que, entendendo isso, todo diálogo se torna mais fácil. E o mundo se resolve: a chuva cai porque é da natureza, o homem trabalha porque é conveniente, duas pessoas se apaixonam porque é da vida.

8 de agosto de 2010

Obrigações

Maria precisa de dois ônibus para atravessar a cidade, exceto aos domingos e feriados, quando os horários dos circulares mínguam.

Se a função do coletivo é transportar força de trabalho, não é à toa. Embora a placa na entrada do veículo informe que a viação existe, apenas, para facilitar a vida.

Maria, contudo, não se importa. Afinal, foi uma luta para comprar um presente para a neta. Se parar, não conseguirá cumprir sua obrigação na próxima data comemorativa.

7 de agosto de 2010

Self

Trouxe à mesa a porção de fritas, prometendo trazer a Coca-Cola em breve. Anotou mais alguns pedidos. Em meio a centenas, não pensava nas horas seguintes, quando, já no quarto, estaria sozinha. 

Percebeu que Maria havia terminado a limpeza do banheiro. Meia hora depois, seria preciso repetir o trabalho, sem que ninguém notasse, a não ser que deixasse de fazê-lo.

Porque algumas coisas são assim, só percebidas quando não acontecem.

5 de agosto de 2010

Topus

Nada resolve o dia se não houver um lugar seguro de retorno, com tudo o que há e cabe dentro. Ter para onde voltar justifica sair em busca de algo.